O golpe de Estado continuado

Morris Louis, Phi, 1960-1
Whatsapp
Facebook
Twitter
Instagram
Telegram

Por BOAVENTURA DE SOUSA SANTOS*

Com a vitória de Lula, a democracia brasileira sobreviveu a esta nova fase do golpe de Estado continuado. E agora? Quais os próximos passos?

Neste domingo tornou-se evidente que está em curso um golpe de Estado no Brasil. É um golpe de tipo novo, cujo curso poderá não ser substancialmente afetado pelo resultado das eleições, ainda que a vitória de Lula da Silva certamente afetará o seu ritmo.

É um golpe que começou a ser posto em movimento em 2014 com a contestação dos resultados das eleições presidenciais ganhas pela presidente Dilma Rousseff; prosseguiu com o impeachment da presidente Dilma Rousseff em 2016; com a prisão ilegal do ex-presidente Lula da Silva em 2018 de modo a impedi-lo de concorrer às eleições que foram ganhas pelo presidente Jair Bolsonaro, beneficiário principal do golpe de Estado na sua fase atual.

Com a eleição de Jair Bolsonaro encerrou-se a primeira fase do golpe e iniciou-se uma segunda. Tal como Adolf Hitler em 1932, Jair Bolsonaro tornou claro desde o primeiro momento que se servira da democracia exclusivamente para chegar ao poder e que, uma vez atingido este objetivo, exerceria o poder com o exclusivo objetivo de a destruir. Nesta segunda fase, o golpe assumiu a forma de esvaziamento lento da institucionalidade e da cultura política democráticas, cujos principais componentes foram os seguintes.

No domínio da institucionalidade: exploração de todas as debilidades do sistema político brasileiro, nomeadamente do poder legislativo, aprofundando a mercantilização da política, a compra e venda de votos dos representantes do povo no período entre eleições e a compra e venda de votos de eleitores durante os períodos eleitorais; a cumplicidade do sistema judiciário conservador incapaz de imaginar a igualdade dos cidadãos perante a lei e habituado a conviver tanto com o primado do direito como com o primado da ilegalidade, dependendo dos interesses em causa; a captura das Forças Armadas através da distribuição massiva de cargos ministeriais e administrativos.

No domínio da cultura política democrática: a apologia da ditadura e dos seus métodos repressivos, incluindo a tortura; utilização massiva das redes sociais para divulgar notícias falsas e promover a cultura do ódio e uma ideologia de bem-estar esvaziada de outro conteúdo que não o do mal-estar ou sofrimento infligido ao “outro” construído como inimigo; a capilarização no âmago do tecido social do imperialismo religioso conservador dos EUA (evangelismo neopentecostal) em vigor desde 1969 como preferencial política contra-insurgente.

Esta fase concluiu-se no final do primeiro turno das eleições presidenciais em 2 de outubro passado. A partir daí, entrou numa fase nova assente no ataque frontal ao núcleo duro da democracia liberal, o processo eleitoral e as instituições encarregadas de garantir o seu decurso normal. Esta fase é qualitativamente nova em razão de dois fatores.

Em primeiro lugar, tornou-se mais clara a internacionalização do ataque à democracia brasileira por via de organizações de extrema direita globais originárias e financiadas pela plutocracia norte-americana. O Brasil transformou-se no laboratório da extrema direita global; aí se testa a vitalidade do projeto fascista global em que o neoliberalismo joga um novo (último?) fôlego.

O objetivo principal é a eleição de Donald Trump em 2024. Informações fidedignas dão-nos conta de que as empresas de desinformação e de manipulação eleitoral ligadas ao notório fascista Steve Bannon estiveram instaladas em dois andares de uma das ruas principais de São Paulo donde dirigiram as operações.

Nesta fase eleitoral, as duas estratégias principais foram as seguintes. A primeira foi a intimidação para impedir o “voto errado” e os benefícios em troco do “voto certo” oferecido pelo baixo empresariado e por políticos locais. A segunda, há muito utilizada pelas forças conservadoras nos EUA, sob o nome de vote suppression, foi a supressão do voto. Tratou-se de um conjunto de medidas excecionais, sempre sob o verniz da normalidade legal, destinadas a impedir os grupos sociais mais inclinados a votar no candidato oposto aos golpistas de exercer o seu direito de voto: bloqueios de estradas, excesso de zelo na fiscalização de veículos que transportam potenciais votantes, intimidação de modo a provocar a desistência, suspensão de transportes gratuitos decretados pela lei eleitoral para promover o exercício do direito de voto aos mais pobres.

E agora, Brasil? A democracia brasileira sobreviveu a esta nova fase do golpe de Estado continuado. Para isso contribuiu o notável e destemido envolvimento dos democratas brasileiros que viram no seu voto a prova de uma vida minimamente digna, a afirmação da sua auto-estima civilizatória, o princípio ativo da energia democrática para os tempos difíceis que se avizinham. Contribuiu também a firmeza das instituições da justiça eleitoral, no meio de pressões, de desautorizações e de intimidações de todo o tipo. Mas seria estultícia irresponsável pensar que o processo golpista terminou. Não terminou e vai entrar numa nova fase porque as condições e as forças nacionais e internacionais que o reclamam desde 2014 continuam vigentes e só se fortaleceram nestes anos mais recentes.

O golpe de Estado continuado vai entrar numa nova fase. De imediato, será provavelmente a contestação dos resultados eleitorais para compensar o fracasso dos golpistas em não terem conseguido os resultados que pretendiam com as múltiplas fraudes que praticaram. Depois, o golpe assumirá outras formas, ora mais subterrâneas com a utilização do crime organizado para intimidar as forças democráticas, ora mais institucionais com a mobilização desviante do poder legislativo para criar uma situação de permanente ingovernabilidade, nomeadamente com a ameaça de impeachment do governo eleito e dos quadros superiores do sistema judicial.

Embora o objetivo de médio prazo dos golpistas seja impedir que o Presidente Lula da Silva termine o seu mandato, o processo do golpe continuará e só será verdadeiramente neutralizado quando os democratas brasileiros se derem conta de que a vulnerabilidade da democracia é em boa medida auto-infligida, pela arrogância em pretender ser a única condição para a legitimidade do poder em vez de assumir que a sua legitimidade estará sempre à beira do colapso numa sociedade socioeconómica, histórica, racial e sexualmente muito injusta.

*Boaventura de Sousa Santos é professor catedrático da Faculdade de Economia da Universidade de Coimbra. Autor, entre outros livros, de O fim do império cognitivo (Autêntica).

Publicado originalmente no jornal Público.

O site A Terra é Redonda existe graças aos nossos leitores e apoiadores. Ajude-nos a manter esta ideia.
Clique aqui e veja como

Veja neste link todos artigos de

AUTORES

TEMAS

10 MAIS LIDOS NOS ÚLTIMOS 7 DIAS

Lista aleatória de 160 entre mais de 1.900 autores.
Luiz Werneck Vianna Sergio Amadeu da Silveira Leonardo Sacramento João Feres Júnior Kátia Gerab Baggio Francisco de Oliveira Barros Júnior Flávio R. Kothe Atilio A. Boron Antonino Infranca Paulo Sérgio Pinheiro Francisco Pereira de Farias Marjorie C. Marona Elias Jabbour Luiz Marques Alexandre Aragão de Albuquerque José Machado Moita Neto Jean Pierre Chauvin Paulo Martins Salem Nasser Ronaldo Tadeu de Souza Eliziário Andrade Rafael R. Ioris Vinício Carrilho Martinez Marcus Ianoni Heraldo Campos José Dirceu Marcos Aurélio da Silva Ronald León Núñez Andrés del Río Denilson Cordeiro Tarso Genro Luiz Carlos Bresser-Pereira Paulo Nogueira Batista Jr Lincoln Secco Mariarosaria Fabris Eleutério F. S. Prado Juarez Guimarães Plínio de Arruda Sampaio Jr. Michael Löwy Érico Andrade Paulo Fernandes Silveira José Costa Júnior Jorge Branco Lorenzo Vitral Carlos Tautz Armando Boito Luciano Nascimento Chico Whitaker Dênis de Moraes Luiz Roberto Alves João Carlos Salles Leonardo Avritzer Benicio Viero Schmidt Jorge Luiz Souto Maior Carla Teixeira João Sette Whitaker Ferreira Marcos Silva Manuel Domingos Neto Osvaldo Coggiola João Adolfo Hansen Gilberto Lopes Ricardo Antunes Tales Ab'Sáber Alexandre de Freitas Barbosa André Márcio Neves Soares Henry Burnett Luis Felipe Miguel Caio Bugiato Ronald Rocha Celso Frederico Henri Acselrad Samuel Kilsztajn Gerson Almeida Bruno Machado Claudio Katz Luís Fernando Vitagliano Ricardo Abramovay Andrew Korybko Walnice Nogueira Galvão Alysson Leandro Mascaro Ricardo Musse Michael Roberts Vanderlei Tenório Chico Alencar Thomas Piketty Ari Marcelo Solon Antonio Martins Alexandre Juliete Rosa Eugênio Trivinho Maria Rita Kehl Jean Marc Von Der Weid Fábio Konder Comparato Marcelo Guimarães Lima Gabriel Cohn Everaldo de Oliveira Andrade Gilberto Maringoni Rubens Pinto Lyra Alexandre de Oliveira Torres Carrasco Bruno Fabricio Alcebino da Silva José Luís Fiori Luiz Bernardo Pericás Sandra Bitencourt Fernando Nogueira da Costa Afrânio Catani Francisco Fernandes Ladeira Berenice Bento Ricardo Fabbrini Matheus Silveira de Souza Igor Felippe Santos Marcelo Módolo Bento Prado Jr. Annateresa Fabris Manchetômetro Marilia Pacheco Fiorillo João Paulo Ayub Fonseca Priscila Figueiredo Antônio Sales Rios Neto Otaviano Helene Daniel Costa Celso Favaretto Flávio Aguiar Tadeu Valadares Ladislau Dowbor Eleonora Albano Lucas Fiaschetti Estevez Eugênio Bucci Yuri Martins-Fontes Eduardo Borges Dennis Oliveira João Lanari Bo Michel Goulart da Silva André Singer José Geraldo Couto Boaventura de Sousa Santos Daniel Brazil Paulo Capel Narvai Luiz Renato Martins João Carlos Loebens Bernardo Ricupero Airton Paschoa Vladimir Safatle Milton Pinheiro Alexandre de Lima Castro Tranjan Luiz Eduardo Soares Leda Maria Paulani Valerio Arcary Remy José Fontana Rodrigo de Faria Mário Maestri Anselm Jappe Slavoj Žižek José Micaelson Lacerda Morais Julian Rodrigues Marilena Chauí Leonardo Boff José Raimundo Trindade Fernão Pessoa Ramos Daniel Afonso da Silva Liszt Vieira Renato Dagnino

NOVAS PUBLICAÇÕES